Comentário: O manual de Epicteto

Jeová Nissi
10 min readJan 6, 2021

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1. Introdução

O manual de Epicteto é o primeiro livro clássico do estoicismo que é recomendado para iniciantes. Neste livro, é apresentado lições práticas — demonstrando, por meio de exemplos, a aplicação dos princípios. Além de apresentar as lições e alguns exercícios, a sua linguagem é direta. Vale ressaltar que o livro (tanto esse como o “Diatribes de Epicteto’’) não foi escrito por Epicteto, mas por seus alunos.

2. Um resumo da história de Epicteto:

Ele nasceu de uma escrava — por volta de seus quinze anos, foi “levado para Roma numa caravana de escravos. Foi comprado num leilão por um ex-escravo, um ‘liberto’ chamado Epafrodito, secretário do imperador de Roma, o jovem (com 27 anos de idade) Nero”(James B. Storckdale, 2011, p. 15–16, grifo nosso).

Após a morte de Nero, Epafrodito libertou Epicteto. Sendo liberto,

começou a frequentar aulas de filosofia oferecidas em parques públicos. E naqueles dias, em Roma, ‘filosofia’ era sinônimo de estoicismo. O ponto de virada de sua vida foi sua adoção por Musônio Rufo, o melhor professor de filosofia do primeiro século em Roma.(ibidem, grifo nosso).

Após 10 anos com Rufo, Epicteto entrou na carreira de filósofo.

3. Resumindo o livro de Epicteto e o estoicismo:

O escritor e professor de filosofia Nigel Warburton, resumindo o estoicismo, nos dá uma pequena explicação que também resume a obra de Epicteto:

Os primeiros estoicos […] ficaram mais conhecidos por suas visões a respeito do controle mental. Sua ideia básica era a de que só deveríamos nos preocupar com as coisas que podemos mudar e não deveríamos nos preocupar com mais nada. […] os estoicos tinham a tranquilidade de espírito como alvo.

[…]

A ideia de que somos responsáveis pelo que sentimos e pensamos era central para o estoicismo. Podemos escolher como será a nossa reação à boa e à má sorte. […] os estoicos […] pensavam que aquilo que sentimos a respeito de uma situação ou de um evento é uma questão de escolha. As emoções simplesmente não acontecem conosco. Não temos de nos sentir tristes quando algo que queremos dá errado; não temos de sentir raiva quando alguém nos engana (Nigel Warburton, 2017, p. 31–32, grifo nosso)

Se pudéssemos resumir o livro de Epicteto em princípios, seriam esses dois: 1) Controle suas emoções 2) Procure controlar e se preocupar somente com aquilo que está em suas mãos.

4. O que podemos extrair da obra?

Irei resumir a obra em três partes — pegarei as principais ideias e as que mais me chamaram a atenção (Elas não estão em ordem da leitura).

4.1. Como controlar as emoções e os sentimentos?

Uma das perguntas que muitos fazem é essa: como posso me manter controlado quando um sentimento ou uma emoção (indesejada) aparecer? Epicteto nos dá uma luz:

a) Procure lembrar das duas opções e de suas consequências

Lembre-se de que se sentirá inferior e decepcionado se emoção e o sentimento te controlar — ao mesmo tempo, também se lembre de que se sentirá satisfeito consigo mesmo se não deixar ser dominado por ela.

Quando apreenderes a representação de algum prazer — ou de alguma outra coisa — guarda-te e não sejas arrebatado por ela. Que o assunto te espere: concede um tempo para ti mesmo. Lembra então destes dois momentos: um, no qual desfrutarás o prazer, e outro posterior, no qual, tendo-o desfrutado, tu te arrependerás e criticarás a ti mesmo. Compara então com esses dois momentos o quanto, abstendo-te desse prazer, tu te alegrarás e elogiarás a ti próprio. (Epicteto, 2012, p. 51, grifo nosso)

b) Comece pelas pequenas coisas:

Epicteto nos dá um exercício muito simples:

Começa a partir das menores coisas. Derrama-se um pouco de azeite? É roubado um pouco de vinho? Diz: ‘Por esse preço é vendida a ausência de sofrimento’; ‘Esse é o preço da tranquilidade’” (Ibidem, p. 23, grifo nosso).

Você não conseguirá controlar as emoções e sentimentos extremamente fortes se não conseguir controlar os mais fracos e comuns. Há uma frase muito popular (dita por Jesus, inclusive) que diz “Quem é fiel no pouco é fiel no muito”. Quem consegue se sustentar diante as pequenas dificuldades vai evoluir ao ponto de suportar as grandes.

4.2. Como um estoico deve se comportar?

Epicteto dá alguns princípios de como um estoico deve se comportar:

a) Não provoque risadas entre estranhos e nem conversas vergonhosas:

Quando estiver em um ambiente novo ou com pessoas novas, não faça papel de bobo:

[..] se te encontrares isolado em meio a estranhos, guarda silêncio. Não rias muito, nem sobre muitas coisas, nem de modo descontrolado” (Ibidem, p. 47, grifo nosso).

Epicteto responde o porquê disso:

Desiste também de provocar risadas, pois tal atitude resvala na vulgaridade, como também pode fazer com que os teus próximos percam o respeito por ti. Encetar conversas vergonhosas é perigoso” (Ibidem, p. 49, grifo nosso).

Em outras palavras, entre amigos íntimos, pode haver risadas e certas brincadeiras (o que é algo extremamente normal) — isto ocorre por causa da intimidade. Os amigos já possuem um nível de respeito e intimidade alto. O mesmo não ocorre com estranhos.

b) Procure exercer alguma qualidade diante todas as situações:

Podemos perceber que um estoico procura melhorar o autodomínio, portanto, procure exercer esse domínio constantemente (o que tem haver com a parte do controle das emoções falada no início). Momentos onde normalmente você fica com raiva, procure, por exemplo, utilizar a calma. Com essa prática, as emoções ficarão mais fáceis de serem controladas:

Quanto a cada uma das coisas que sucedem contigo, lembra, voltando a atenção para ti mesmo, de buscar alguma capacidade que sirva para cada uma delas. Caso vires […] uma bela mulher, descobrirás para isso a capacidade do autodomínio. Caso uma tarefa extenuante se apresente, descobrirás a perseverança. Caso a injúria, a paciência. Habituando-te desse modo, as representações não te arrebatarão (Ibidem, p. 23, grifo nosso).

c) Mais três princípios:

Fixa, a partir de agora, um caráter e um padrão para ti próprio, que guardarás quando estiveres sozinho, ou quando te encontrares com outros. [33.2] Na maior parte do tempo, fica em silêncio, ou, com poucas palavras, fala o que é necessário.

Raramente, quando a ocasião pedir, fala algo, mas não sobre coisa ordinária: nada sobre lutas de gladiadores, corridas de cavalos, nem sobre atletas, nem sobre comidas ou bebidas — assuntos falados por toda parte. […] Põe de lado os banquetes de estranhos e de homens comuns, mas se um dia surgir uma ocasião propícia, mantém-te atento e jamais caias na vulgaridade. Pois sabe que, quando o companheiro for impuro, quem convive com ele necessariamente se torna impuro, mesmo que, por acaso, esteja puro (Ibidem, p. 47, grifo nosso).

A) Fale somente o que é necessário B) Não fale sobre besteiras ou sobre o que os outros estão comentando (aplicando para hoje — só como exemplo — : futebol, BBB, novelas, vida de famosos e etc.) C) Procure não ficar acompanhado de pessoas vulgares — e se ficar, cuidado para não imitar os hábitos da má companhia.

d) Como fica o sexo?

Epicteto aconselhar praticar o sexo após o casamento. Além de não fazer sexo (o que ele chama de “prazeres de Afrodite”) até o casamento, não critique quem já fez ou fale que ainda não experimentou:

Quanto aos prazeres de Afrodite, deves preservar-te ao máximo até o casamento, […]. No entanto, não sejas grave nem crítico com os que fazem uso deles, nem anuncies repetidamente que tu próprio não o fazes” (Ibidem, p. 47, grifo nosso).

e) Faça o que é necessário, apesar dos outros não entenderem a sua ação.

Muitas vezes deixamos de fazer algo porque pensamos que as pessoas não entenderão o ato — Epicteto deixa claro que devemos parar de fazer isso: “Quando discernires que deves fazer alguma coisa, faz. Jamais evites ser visto fazendo-a, mesmo que a maioria suponha algo diferente sobre a ação” (Ibidem, p. 51, grifo nosso).

f) Chegaram a mim dizendo que há boatos/críticas sobre a minha pessoa — o que faço?

Se te disserem que alguém, maldosamente, falou coisas terríveis de ti, não te defendas das coisas ditas, mas responde que ‘Ele desconhece meus outros defeitos, ou não mencionaria somente esses’” (Ibidem, p. 47, grifo nosso)

g) Não seja preguiçoso — se esforce ao máximo

Um dos principais pilares do estoicismo é o autocontrole e a evolução constante — por causa disso, a preguiça (ou qualquer sentimento e emoção) — que atrapalha a sua evolução — deve ser evitada.

Não és mais um adolescente, já és um homem feito. Se agora fores descuidado e preguiçoso, e sempre fizeres adiamentos após adiamentos, fixando um dia após o outro o dia depois do qual cuidarás de ti mesmo, não perceberás que não progrides. […] se uma tarefa árdua, ou prazerosa, ou grandiosa, ou obscura te for apresentada, lembra que essa é a hora da luta, que essa é a hora dos Jogos Olímpicos, e que não há mais nada pelo que esperar, e que, por um revés ou um deslize, perde-se o progresso, ou o conserva (Ibidem, p. 63, grifo nosso)

4.3. Como não ficar decepcionado?

O que fazer para não ficar decepcionado e triste com os eventos da vida?

a) Não se preocupe com aquilo que você não pode controlar:

O motivo de ficarmos decepcionados é porque havia algo — pelo menos, na nossa cabeça — que não deveria acontecer, mas aconteceu. Esperávamos que aquilo ocorresse do jeito que nós queríamos. O que Epicteto recomenda é que não se preocupe com aquilo que não está em suas mãos. Algo só está em suas mãos se você tiver 100% de controle — se por acaso houver alguma variável ou possibilidade de coisas externas se intrometerem, já não está sobre seu poder. Por exemplo, Epicteto fala sobre reputação e dinheiro. Sabemos que os dois são frutos dos nossos atos, correto? Se eu possuir um caráter correto, terei uma reputação de um jovem de bem; se eu me esforçar e conquistar um bom emprego, terei uma boa quantidade de dinheiro. Apesar disso, essas duas áreas da minha vida não estão sob o meu controle. Alguém pode criar mentiras sobre mim, não entender os meus atos e se enganar sobre o meu caráter — e em relação ao dinheiro, podem me roubar.

Isto não significa que devo desprezar a minha reputação ou o dinheiro — apenas não devo depositar todo o meu emocional e a minha paz de espírito nessas duas áreas.

O grande general Sun Tzu — na sua obra tão conhecida — nos dá um conselho semelhante ao de Epicteto:

[…] O que depende de mim posso fazer, o que depende do inimigo não está nas minhas mãos (Sun Tzu, 2008, p. 29, grifo nosso).

Das coisas existentes, algumas são encargos nossos; outras não.[…] Então retira a repulsa de todas as coisas que não sejam encargos nossos […]. Por ora, suspende por completo o desejo, pois se desejares alguma das coisas que não sejam encargos nossos, necessariamente não serás afortunado (Ibidem, p. 15–17, grifo nosso).

b) Controle os seus sentimentos, vontades, emoções, pensamentos — é uma das coisas que você pode ter total controle:

Você não pode controlar o fato de alguém pisar ou não em cima de de seu pé, mas pode controlar a sua reação quando alguém pisar. Você não pode controlar o fato de alguém falar mal de você ou não, mas pode controlar o modo como você vai reagir. Segundo os estoicos, as emoções são fruto das vontades — se você quer sentir raiva, vai sentir. Se quer sentir alegria, vai sentir. Portanto, as emoções e os sentimentos estão sob o seu controle — apenas bastar você ter vontade e exercitar o autodomínio.

Coisas ruins podem (e vão) acontecer com você, mas você não vai ficar decepcionado.

se quiseres não falhar em teus desejos, isso tu podes. Então exercita o que tu podes” (Ibidem, p. 23, grifo nosso).

c) Examine a natureza antes de agir:

Algumas pessoas, por exemplo, entram no namoro e se decepcionam quando ele acaba. O motivo da decepção é bem simples: elas achavam que o relacionamento iria durar para sempre. Qual é o erro dessas pessoas? Elas não analisaram a natureza (como se comporta, o que pode ou não acontecer, o que ocorre geralmente e etc.) do namoro. É normal o namoro acabar — isto não é nenhuma novidade. O fim faz parte da natureza do namoro — portanto, não é nenhuma surpresa quando ele acaba. Diante disso, você tem duas opções: A) Sabendo da natureza do ato, o rejeita (pois sabes o que pode ou não acontecer — o que pode dar errado ou não) B) Não se espantando com as consequências, já que você sabia o que poderia acontecer.

Sobre cada uma das coisas que seduzem, tanto as que se prestam ao uso quanto as que são amadas, lembra de dizer de que qualidade ela é, começando a partir das menores coisas. Caso ames um vaso de argila, [diz] que “Eu amo um vaso de argila”, pois se ele se quebrar, não te inquietarás (Ibidem, p. 17, grifo nosso).

Quando estiveres prestes a empreender alguma ação, recorda-te de que qualidade ela é” (Ibidem, p. 19, grifo nosso).

Homem! Examina primeiro de que qualidade é a coisa, depois observa a tua própria natureza para saber se a podes suportar” (Ibidem, p. 41, grifo nosso).

5. Conclusão:

Acredito que essas sejam as principais lições que podemos extrair deste livro prático e simples de Epicteto. Diante o atual mundo, onde constantemente tentamos ter poder sobre eventos que estão fora do nosso controle ou pensamos fugir das adversidades, Epicteto nos dá algumas soluções para enfrentarmos as dificuldades de cabeça erguida.

Referências:

STORCKDALE, James B. A tríade do guerreiro estoico. 1.ed. São Cristóvão: Viva Vox, 2011.

WARBURTON, Nigel. Uma breve história da filosofia. 1.ed. São Paulo: L&PM Editores, 2017.

TZU, Sun. A arte da guerra. São Paulo: Ciranda Cultural, 2008.o

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